Qual o nome mais monótono que você pode imaginar? Esta foi a pergunta do produtor Harry Saltzman a um jovem ator em ascensão chamado Michael Caine numa conversa casual durante a produção de Ipcress: O Arquivo Confidencial (The Ipcress File, 1965). Caine respondeu “Harry” percebendo a gafe com um seco “muito obrigado” de Saltzman. O sobrenome, Caine tomou emprestado de um colega de escola chamado Tommy Palmer. Nascia ali, Harry Palmer: o James Bond dos intelectuais. Ou melhor, a antítese de 007.
Os anos 1960 viram o nascimento do agente 007 no cinema encarnado em Sean Connery. O personagem imortal de Ian Fleming atingira as telas em 1962 com 007 contra o Satânico Dr. No (Dr. No, 1962) mas, já desfrutava de um passado longevo na literatura desde 1953. Bond revolucionara o cinema e, como todo sucesso, inspirou imitadores em diversas formas e estilos. Durante a década, foram lançados inúmeros filmes com agentes e espiões com licença para matar, mais notadamente na Europa, criando o gênero Eurospy. Vários produtores e diretores queriam um “James Bond” para chamar de seu. Mas, e quando a imitação vem do criador?
No mesmo ano do lançamento de O Satânico Dr. No, um autor compatriota de Fleming e conhecido pelo seu interesse voraz em história militar e culinária, lança o livro The IPCRESS File. Seu nome é Len Deighton. Começava ali sua série do “herói sem nome”. Parece uma coisa meio Sergio Leone em seus westerns famosos. Troças á parte, o livro nos apresentava a um mundo totalmente diferente do sofisticado espião de Ian Fleming. Um mundo mais complexo e com pé no chão. Uma terra sem Blofelds e gatos angorás. Traições, agentes duplos, intrigas complexas, sem ter em quem confiar, nem mesmo dentro do serviço secreto, e tudo isso narrado pelos olhos do protagonista que é, em essência, um anti-herói. Deighton com seu livro em 1962 abriu a caixa de Pandora da espionagem real, sem martínis e Aston Martin. Sem heróis ou mocinhos. Ou como diria o personagem René Mathis em Quantum of Solace, os heróis e os mocinhos se misturam.
Harry Saltzman, o mesmo da parceria com Albert R. Broccoli, não se dedicava somente a franquia James Bond como o seu sócio. Durante o ínterim dos filmes de 007, Saltzman produzia alguns filmes como Battle of Britain e Play Dirty. Vendo o potencial cinematográfico dos livros de Len Deighton, Saltzman apressou-se em garantir os direitos para produzi-los. Assim, surge ali a tese e antítese da espionagem no cinema nas mãos de um só homem: Harry Saltzman. E ele levaria consigo muitos colaboradores, diretores e atores da franquia Bond.
Ipcress: O Arquivo Confidencial chegou ás telonas no mesmo ano de 007 contra a Chantagem Atômica (Thunderball, 1965). A película têm muitos nomes conhecidos dos fãs de Bond em sua equipe: John Barry, Ken Adam, Peter Hunt e Peter Murton. Guy Doleman, o Conde Lippe de Thunderball, interpreta o equivalente ao “M” de Palmer, o Coronel Ross. Papel este que ele interpretará pelo restante da trilogia. Saltzman chegou a considerar o ator Robert Shaw, o Donald “Red” Grant de Moscou contra 007 (From Russia with Love, 1963) que também era um escritor, para elaborar o roteiro. Entretanto, o projeto inicial de Shaw teria sido rejeitado. Nossa, realmente no nascimento de Palmer se usou muito do DNA de James Bond!
O filme catapultou Michael Caine ao estrelato internacional. Em essência, Caine foi o criador de Harry Palmer. Além de batizá-lo, Caine deu-lhe características como os óculos, talvez mais por conveniência do que por criatividade fugaz (Caine é míope na vida real). Apesar de Harry Saltzman ter considerado outros atores para o papel, nenhuma outra escolha seria tão bem acertada como a do mordomo Alfred Pennyworth (dos filmes de Batman do diretor Christopher Nolan) em sua juventude. Digo, Michael Caine.
Ipcress é uma adaptação bem fiel ao original de Deighton. A trama se baseia no sequestro de cientistas altamente graduados do governo britânico que, passam por um processo agressivo de lavagem cerebral conhecido como IPCRESS (acrônimo em inglês de Indução de Psiconeuroses por Reflexo Condicionado sob Estresse), tornando-os assim inúteis em suas funções. O agente Palmer é transferido de departamento pelo seu chefe, o Coronel Ross, para investigar o sequestro de outro cientista sob a chefia do Major Dalby (interpretado por Nigel Green, adicionando mais um brilhante vilão em seu vasto currículo). A PalmerGirl desse episódio é Jean Courtney (interpretada por Sue Lloyd), uma agente dupla que estabelece o padrão feminino da trilogia: belas e inteligentes mas, nada confiáveis.
O filme foi aclamado pela crítica da época. Ipcress: O Arquivo Confidencial é um “Goldfinger dos intelectuais” diria a revista americana Newsweek. O tom da película estabeleceu uma atmosfera bem distante do incrível mundo de James Bond. Um herói (ou melhor, anti-herói) que mora num apartamento pequeno, tem de preencher relatórios maçantes, carro esporte nem pensar, sabe cozinhar (e é um gourmet), é vulnerável e tem de fazer escolhas morais complexas. Isso passa bem longe da imagem inatingível do James Bond de Sean Connery.
Embora o filme tenha sido creditado á Sidney J. Furie, Harry Saltzman afirmava que havia demitido o diretor bem no início da produção e que Peter Hunt (quem diria?) teria de fato dirigido. Segundo Saltzman, teria mantido o crédito á Furie por obrigação contratual. Hunt teria negado tal afirmação de Saltzman. Ou seja, a questão permanece em aberto.
A série continuaria com Funeral em Berlim (Funeral in Berlin, 1966) tendo a Guerra Fria, assunto um tanto indigesto nos filmes de 007, como foco central da trama. Desta vez, Palmer é enviado por Ross á Berlim Ocidental para auxiliar o também agente Johnny Vulkan (interpretado por Paul Hubschmid) na deserção do alto oficial soviético Coronel Stock (interpretado por Oskar Homolka, de Sabotagem de Alfred Hitchcock) para os ingleses. Só que, assim como anteriormente em Ipcress, nem tudo é tão simples como parece. Nessas idas e vindas na Berlim dividida, Palmer acaba se envolvendo com a agente israelense Samantha Steel (interpretada por Eva Renzi em sua estreia nas telas e casada com Hubschmid na época), que está atrás de um ex-nazista na capital alemã.
O filme é marcado pela continuidade. Personagens do Serviço Secreto que apareceram em Ipcress como Ross, Alice e Chico reaparecem aqui. E a conexão com Bond não parou de crescer. Além dos outros colaboradores do filme anterior (a exceção de John Barry e Peter Hunt), há a inclusão da atriz dubladora Nikki Van der Zyl, famosa por dublar inúmeras Bondgirls nos anos ’60 e ’70, empresta sua voz á personagem Samantha Steel e a cadeira de direção é cedida a ninguém menos que Guy Hamilton.
O Cérebro de Um Bilhão de Dólares (Billion Dollar Brain, 1967) é o terceiro e último capítulo da trilogia original dos anos 60. Sendo o mais “bondiano” dos filmes da série Palmer, é – injustamente – considerado o mais fraco de todos. Neste filme encontramos um Palmer já fora do Serviço Secreto e ganhando a vida como detetive particular quando depara-se com seu antigo chefe, Ross, bisbilhotando em seu escritório/apartamento e pedindo sua volta ao Serviço. Após ser contratado por um uma voz robótica ao telefone, Palmer vai a Helsinki onde encontra-se com a misteriosa Anya (interpretada por Françoise Dorléac, em seu último filme) que o leva a um velho amigo de Harry: Leo Newbigen (interpretado por Karl Malden). A partir dali, somos levados a uma trama de invasão da União Soviética por um milionário texano (interpretado por Ed Begley) recrutando agentes através de um computador superdesenvolvido, o “Cérebro”.
De forma injusta, o filme é amplamente mal avaliado. O tom mais fantasioso do enredo, em contraste com os dois anteriores, realmente põe Palmer e Bond em pé de igualdade. Mas, o filme têm seus méritos e é um casamento sem exagero de realismo com fantasia. O livro original de Deighton é muito mais básico do que o filme mas, o tema essencial é o mesmo. Ainda assim, as ambições do “vilão” da película não o qualificam como um Auric Goldfinger (Golfinger, 1964) ou um Karl Stromberg (The Spy Who Loved Me, 1977). Ele é a uma representação da paranoia da Guerra Fria vista igualmente em Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964) no personagem de Sterling Hayden, o General Jack D. Ripper.
A nós, fãs de 007, somos agraciados com a presença, mesmo que breve e em um papel diminuto, do ator Vladek Sheybal, o Kronsteen de Moscou contra 007. Na direção do filme, Ken Russel não decepciona embora tenha feito o filme sem paixão verdadeira e até contrariado.
Embora tivesse assinado um compromisso contratual de cinco filmes, Michael Caine – assim como Sean Connery – não quis prosseguir no papel. E, com isso, a adaptação de Horse Under Water (o segundo livro de Len Deighton) foi engavetada para sempre. Embora existam rumores que Harry Saltzman tenha considerado o ator Nigel Davenport para substituir Michael Caine, fato é que Harry Palmer não teve a mesma sorte que seu “primo” 007 e prosseguiu imortalizado apenas em Caine sem substituto.
Em 1976, o livro Spy Story de Deighton foi adaptado de forma discreta com o “herói sem nome” sendo rebatizado como Patrick Armstrong e interpretado pelo desconhecido ator Michael Petrovitch. Ironicamente dois anos antes, Michael Caine atuara em um filme chamado O Moinho Negro (The Black Windmill, 1974) que, mesmo não sendo baseado em nenhuma obra de Len Deighton, lembra fortemente seus tempos como Harry Palmer. Podemos dizer que foi seu “Never Say Never Again”? Talvez.
Nos anos 1990, outro Harry – desta vez, Harry Alan Towers (o mesmo dos filmes “Fu Manchu“) – traria Harry Palmer de volta á ação e com direito a ser acompanhado pelo filho de Sean Connery, Jason Connery. Em dois filmes, sem serem baseados em nenhuma obra de Len Deighton, Michael Caine retornaria ao papel.
Com o fim da Guerra Fria, até o bom e velho 007 teve de se readaptar á nova situação geopolítica resultante da queda da URSS. E como Palmer se saiu nisso? Os dois filmes, Expresso para Pequim (Bullet to Beijing, 1995) e Meia-Noite em Moscou (Midnight in Saint Petersburg, 1996) se passam nesse ambiente novo com o qual Palmer tem de agora conviver saindo da aposentadoria. Dos personagens da velha trilogia, apenas Jean Courtney (Sue Lloyd) retorna em “Expresso”. Mas, ainda assim, Caine não decepciona.
Analisando em retrospecto, enquanto a série literária teve ao todo oito livros. Da octologia, foram ás telonas apenas quatro. Palmer fez o legado como a antítese de 007. O James Bond realista. Bourne antes de Bourne, eu diria. Seus óculos chegaram a ser um elemento de paródia em Austin Powers chegando ele ser filho de Michael Caine no terceiro filme, Goldmember (2002). Com o lançamento de O Agente da UNCLE em 2015, pode haver uma esperança em vermos um renascimento da série Palmer. Em 2009, Michael Caine teria dito que Jude Law seria uma ótima escolha para interpretar um Palmer moderno contanto que ele “use os óculos”, segundo o ator. Não seria uma má opção.
Curtiu? Comente e se prepare, em breve Harry Palmer estará em um Bondcast Brasil.
Por: Yuri de Faria
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